Fotos: Projeto Tamar
O filhote brasileiro de tartaruga marinha número 40 milhões já está na barriga de alguma mamãe e vai nascer no próximo verão. O anúncio é do fundador e atual diretor de comunicação e relações públicas do Projeto Tamar, o oceanógrafo Guy Marcovaldi. “É um número que há vinte anos a gente não podia imaginar”, comemora.
De fato, o crescimento do número de desovas e filhotes protegidos pelo Projeto Tamar ao longo desses 40 anos de atividades ininterruptas, surpreende. Enquanto a primeira década de atuação (1981 a 1990) registrou 11.588 ninhos, as oito últimas temporadas reprodutivas (2010 a 2018), menos de uma década, portanto, já alcançaram 217.824 desovas, quase 19 vezes mais! Atualmente, mais de dois milhões de filhotes, em média, nascem por ano no país.
Na soma total, segundo os rigorosos registros técnicos do Projeto Tamar – feitos de início de forma artesanal, passando por um sistema próprio, até chegar na nuvem virtual, mas sempre com o caderno de campo como base – já foram protegidos 398.338 ninhos. Multiplicando por 100, que é a média de ovos em cada ninho, chega-se a 39.833.800 filhotes já protegidos e liberados ao mar.
Na prática, os números se materializam em um processo contínuo e lento de recuperação das populações das cinco espécies que ocorrem no Brasil: cabeçuda (Caretta caretta), gigante ou de-couro (Dermochelys coriacea), de-pente (Eretmochelys imbricata), oliva (Lepidochelys olivacea) e verde (Chelonia mydas), algumas protegidas há quase duas gerações, outras, como a oliva, já há três gerações. “Há fêmeas que marcamos há 40 anos, já em idade adulta, e que continuamos a encontrar na praia periodicamente”, ilustra o fundador do Tamar.
Apesar do crescimento, as cinco espécies continuam ameaçadas de extinção, o que significa que há muito trabalho ainda para ser feito até que elas estejam totalmente à salvo do risco de desaparecerem do planeta, como ocorreu com tantos animais, desde que as tartarugas marinhas surgiram, há 150 milhões de anos.
“A expectativa é que a situação melhore ainda mais nos próximos anos, para as gerações futuras. Isso tudo graças ao trabalho e dedicação das equipes de campo do Tamar espalhadas por várias praias brasileiras, com apoio da sociedade e de diversos parceiros”, destaca Guy Marcovaldi.
A certeza tem raízes na história da instituição e das pessoas que se dedicam a ela. “Estamos há 40 anos na praia trabalhando e fazendo um Brasil que, ambientalmente falando, todos gostaríamos de ter. Se o Brasil perdeu algumas coisas na área ambiental, em termos de tartarugas marinhas, ao contrário, ainda é referência mundial em conservação da biodiversidade”, acentua, citando diversos prêmios e condecorações internacionais conquistados.
Perigos e mistérios
Os répteis marinhos mais simpáticos do planeta agradecem a persistência. A vida de uma tartaruga marinha é cheia de mistérios e perigos. Elas possuem um ciclo de vida longo e complexo e vivem a maior parte dele no mar, sendo a pesca acidental, por redes e anzóis, a maior ameaça que enfrentam.
A cada mil filhotes que nascem, somente um ou dois chegarão à idade adulta. E mesmo quando consegue chegar na fase reprodutiva, por volta dos 35 anos, uma fêmea não desova todos os anos. “Se ela não encontra comida suficiente, não fica gorda o bastante para transmitir a gordura necessária aos ovos. Então não desova”, explica o oceanógrafo. Às vezes isso leva três anos para acontecer.
“Não tem chance de superpopulação”, brinca Guy. Além disso, os oceanos formam um território gigantesco. “A Amazônia fica pequenininha perto do mar”, compara, ressaltando que o verdadeiro pulmão do mundo é o bioma marinho, onde as algas e fitoplâncton produzem mais de 95% do oxigênio.
No Brasil, a população mais crítica é a da tartaruga-gigante, que tem como único ponto de concentração de desovas o norte do Espírito Santo, especialmente a Foz do Rio Doce, onde estima-se existir até 30 fêmeas se reproduzindo regularmente, mas de forma intercalada. Como na maioria das espécies, com exceção da oliva, a fêmea adulta da gigante não vai à praia desovar todos os anos.
Capixabas
A região recebe também grande número de fêmeas da cabeçuda, que estende seu sítio reprodutivo principal até o norte da Bahia.
O oceanógrafo Joca Thomé, coordenador nacional do Centro Tamar/ICMbio – braço governamental do Projeto Tamar, que atua junto da ONG Fundação Pró-Tamar – destaca o efeito mais amplo dessa preferência das tartarugas pelo litoral norte capixaba.
“Com extensas faixas preservadas por unidades de conservação e por bases de pesquisa e visitação do Projeto Tamar, a região tem mostrado que a conservação ambiental pode andar junto com o desenvolvimento econômico das comunidades locais”, afirma.
Na Vila de Regência, por exemplo, as atividades de proteção das tartarugas marinhas formam o principal núcleo de geração de renda, mais do que a Prefeitura Municipal ou a indústria petrolífera, instalada poucos anos antes que o Tamar.
Atingida diretamente pelo crime da Samarco/Vale-BHP, em 2015, a Foz do Rio Doce ainda é alvo de estudos sobre os impactos provocados pela torrente de rejeitos de mineração que devastaram mais de 600 km do maior rio capixaba. “Mas as tartarugas estão aumentando, resistindo à pressão”, ressalva Joca.
“Novas baianas”
O aumento no número de tartarugas marinhas brasileiras é acompanhado do prolongamento do período de reprodução. Se no início as desovas aconteciam entre outubro e janeiro, hoje acontecem o ano inteiro, com mais ênfase entre agosto e março e com picos maiores na primavera e verão.
Há ainda uma terceira variável em crescimento, que é o geográfico. “Elas estão retornando para as praias onde seus avós se reproduziam, reconquistando praias do passado”, observa Guy.
Um belo exemplo é da tartaruga-oliva, outrora encontrada apenas em Sergipe. Recentemente, expandiu sua área de reprodução para o norte da Bahia, por isso recebeu o carinhoso apelido de “novas baianas”. Para se ter ideia, em 1985 foram apenas três desovas de olivas na Praia do Forte (BA). Já em 2017, esse número aumentou para 159.
Sinfonia Quelônica
A chegada do filhote nº 40 milhões, no aniversário de 40 anos do Projeto Tamar, já vai começar a ser comemorada no próximo dia 18, em Aracaju, com o lançamento das primeiras três peças que integram a Sinfonia Quelônica, composta pelo maestro Luciano Calazans.
A Sinfonia Quelônica tem cinco movimentos, cada um homenageando uma espécie de tartaruga marinha que ocorre no Brasil, e é executada com cerca de 70 instrumentos. Os movimentos das tartarugas de-pente, oliva e cabeçuda já estão prontos. Em 2020, a intenção é apresentar a obra inteira no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
“A música é muito importante pro Tamar. Mandamos nossa mensagem de proteção das tartarugas através das publicações científicas, camisetas, artesanatos, livretos, livros, folders, cartazes, e, nos últimos dez anos, com música. O poder da música é impressionante”, observa o fundador do Tamar, que já protagonizou clipes com estrelas da grandeza do pernambucano Lenine.
Mil quilômetros
O Projeto Tamar começou em 1980 a proteger as tartarugas marinhas no Brasil, por meio de pesquisa, proteção e manejo. A Fundação Pró-Tamar executa a maior parte das ações descritas no Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação das Tartarugas Marinhas no Brasil do ICMBio/MMA.
São cerca de 1.100 quilômetros de praias protegidas em 26 localidades, em áreas de alimentação, desova, crescimento e descanso das tartarugas marinhas, no litoral e ilhas oceânicas dos estados da Bahia, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina.
O monitoramento das desovas se estende desde São Tomé, no Rio de Janeiro, até a praia de Pipa, no Rio Grande do Norte. Havendo também as ilhas oceânicas, como Fernando de Noronha (PE). As áreas de alimentação estão em Ubatuba (SP), Florianópolis, Barra da Lagoa e no Beto Carrero World (SC).
Foto: Fernanda Couzemenco
Já as bases com visitação aberta ao público estão no Espírito Santo (Vitória e Regência), na Bahia (Arembepe e Praia do Forte) e em Sergipe (Aracaju e Pirambu), que recebem quase um milhão de visitantes por ano.